Pontuação rouba crédito

Por Maria Inês Dolci

No dia 25 de agosto, será realizada a primeira audiência pública no Superior Tribunal de Justiça (STJ), sobre pontuação do consumidor. Se ainda não tomou conhecimento disso, empresas de serviços de restrição ao crédito vendem aos lojistas uma ferramenta que determina, por meio de pontos, se as pessoas têm maior ou menor risco de se tornarem inadimplentes.

Bacana, não?

Essa nem George Orwell, o escritor inglês que escreveu “1984”, descrevendo uma sociedade autoritária dominada pelo ‘Grande Irmão’, poderia imaginar.

Já há a lista dos que têm dívidas – que são negativados e não têm direito ao crédito – e o cadastro positivo, que indica os que pagam em dia.

Agora, há indícios de calote, algo etéreo, porque não se pode punir alguém que não cometeu crime ou transgressão.

Seria como colocar na penitenciária uma pessoa que poderia, talvez, quem sabe, assassinar outra.

Ou impor uma dieta com poucas calorias a alguém que, vejam só, poderia engordar no futuro distante.

Escrito assim, soa ridículo, não? Pois é, mas a pontuação existe e já interfere no acesso ao crédito. Segundo a lei, mesmo quem já deixou de pagar dívidas, quando as quita, deve ser retirado de qualquer lista de inadimplentes.

O que é justo, porque não se pode impedir que um consumidor parcele suas compras ou faça um empréstimo, porque deveu e depois pagou.

O nome da ferramenta, a propósito, é sistema de scoring (pontuação, em inglês).

O tema subiu ao STJ depois que a Justiça gaúcha condenou a empresa Boa Vista a indenizar um consumidor que se sentiu prejudicado pelo sistema.

Quem quiser participar – e acho que deveria – terá de se inscrever até o dia 5 de agosto pelo e-mail sistemascoring@stj.jus.br.

Eu participarei. Se não agirmos, perderemos direitos sem sequer saber que nos foram retirados. O pior dano é aquele cometido em surdina, sem alarde nem publicidade.

Não defendo que as pessoas deixem de pagar suas contas. Ao contrário, é fundamental arcar com os compromissos financeiros assumidos, exceto quando houver irregularidades na cobrança. Assim mesmo, orientamos os consumidores a pagar e a recorrer à Justiça. Nunca a ficar devendo.

Ainda assim, não concordo com rankings de devedores, pois generalizam e tornam iguais situações muitas vezes diversas. Há quem deva por não querer pagar, por desleixo, por doença, por desemprego.

Retirar o crédito de quem tenha alguma dificuldade de pagamento pode condená-lo à inadimplência por um período mais prolongado.

Disfarçar a negativação com o cadastro positivo também não me agrada.

Intuir que determinado cidadão não terá como pagar eventuais boletos, é ainda pior. Joga com o imponderável, no nível do personagem Josef K., do escritor Franz Kafka, que, ao acordar uma manhã, é preso sem razão aparente. Ninguém lhe informa que crime teria cometido.

Ao ler a obra, me recordo de ter pensado quão injusta e absurda era a detenção de K. Vertida para o presente e a realidade, a história seria ainda mais inconcebível.

Um dos direitos mais fundamentais do ser humano é o de se defender de qualquer acusação que lhe seja feita. Para isso, obviamente, tem de ser informado do que pesa contra ele.

Não podemos aceitar que empresas definam quem pode ou não ter crédito, em função de uma soma de pontos. A Justiça tem de agir contra tal abuso. A audiência pública é a oportunidade para discutir tal prática tresloucada, para detê-la.

As maiores afrontas aos direitos e à liberdade do ser humano não ocorreram, em geral, de uma só vez, em forma de pacote. Foram ocorrendo ao longo do tempo, até que o ar ficou irrespirável.

Vamos lutar pelo oxigênio da democracia, que é a obediência ao arcabouço legal do país.