Bullying de Páscoa

Por Maria Inês Dolci

 

“Personalize a embalagem com adesivos e sacaneie seu amigo.” Resolvi tratar desse caso, de ovos de Páscoa que convidavam crianças e adolescentes a fazer estas, digamos, brincadeiras com amigos e familiares.

Sou adepta da liberdade de expressão, do bom humor e entendo que cada geração tenha sua forma de brincar e de se divertir. Mas eu concordo com a decisão do Procon-RJ de recolher estes produtos, sob o argumento de que incitariam a discriminação entre seus públicos-alvo.

Depois, nesta sexta-feira, dia 4, foi feito acordo entre o órgão de defesa do consumidor e os representantes do fabricante: os ovos podem voltar às prateleiras desde que a palavra ‘sacaneie’ seja rasurada ou tapada.

O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, que trata da publicidade enganosa ou abusiva, é claro também em seu parágrafo segundo: “É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, que incite à violência….”.

Ninguém chama um colega de nerd para elogiá-lo. Nem comenta sobre o apetite exagerado de outro (‘morto de fome’, nas embalagens dos ovos de chocolate).

Gordinhos são alvo de apelidos e gozações, em um autêntico massacre psicológico. Jovens que gostam de tecnologia e de estudar, e que eventualmente sejam tímidos em seus relacionamentos, também.

A Páscoa está vinculada à ressurreição, o que tem um grande significado, não importa a religião ou a descrença de cada um. Ressurgir é reviver, metafisicamente ou frente aos duros fatos da vida.

Fazer propaganda para conquistar os consumidores não tem nada de errado. Mas reforçar, com ela, chacotas discriminatórias é um equívoco, pelo menos.

O Brasil tem de mudar. Dizer não à violência, seja ela física ou psicológica. Ocorra em redes sociais, nas escolas ou no transporte público.

Não seremos civilizados enquanto permitirmos a discriminação de qualquer pessoa tida como ‘diferente’. Primeiramente, isso invade o direito do cidadão se desenvolver como ser humano, inobstante crenças, gêneros, raças, preferências afetivas, renda e profissão.

O que é ser normal? Não somos criados em um molde de fazer pessoas iguais. Essa é a graça da vida: a variedade de pensamentos e de gostos. A diversidade e a inclusão social deveriam ser óbvias. O fato de ter de falar nisso já demonstra nosso atraso.

Não importam, por exemplo, o peso nem as roupas mais ou menos sensuais: todos deveriam ser respeitados. E o consumidor pode ajudar na evolução de nossos comportamentos e práticas, rejeitando convites aos abusos. Indicando que, assim, não preferirá um produto a outro.

Temos de acabar com toda forma de discriminação, inclusive com os trotes violentos que humilham e desrespeitam jovens, até então felizes pelo ingresso no curso superior.

É revoltante que continuem a ser tolerados, como se fossem confraternizações de estudantes. Não são. Ali, pessoas expressam seu autoritarismo e sua intolerância à convivência com os calouros.

Os anunciantes e os profissionais da propaganda deveriam se lembrar de que o consumidor é, antes de tudo, cidadão.

E que todos corremos, sim, o risco de ser preconceituosos ou de avançar o sinal nas ‘brincadeirinhas’, se não estivermos atentos a nossos pensamentos, falas e em constante mudança de hábitos.

Foi o que se percebeu, por exemplo, na pesquisa na qual 26% dos consultados culparam o vestuário feminino, logo, as próprias vítimas, pelo assédio sexual (inicialmente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea havia divulgado que 65% acreditavam nisso, depois alegou erro por troca de gráficos). Mesmo com a correção, ainda é absurdo que um em cada quatro brasileiros transfira a culpa do agressor para a vítima.

Em um país que ainda pensa assim, nunca é demais avaliar novamente alguma peça publicitária antes de jogá-la à população. Há inúmeros outros casos, bem mais graves do que este, dos ovos de Páscoa. Como o que contrapôs o Metrô e uma emissora de rádio, em torno de anúncio sobre trens lotados e possibilidade de ‘xaveco’, ou seja, assédio.

Cito, porém, a propaganda de Páscoa porque parece, justamente, uma brincadeira de mau gosto. E é aí que mora o perigo: em coisas que, na primeira análise, não pareçam tão ameaçadoras.

A propósito, apoio o texto aprovado unanimemente pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que recomenda o fim da propaganda voltada às crianças.

Temos de pensar, seriamente, no tipo de sociedade que gostaríamos de ser e de ter. E trabalhar para que as mudanças se concretizem, a começar pelas culturais, as transformações mais difíceis para todos nós.